Doença e praga: entre vírus e gafanhotos
Por Kleber Medici
Recebi uma ligação da Rosiléia ou Rosinéia do município de Linhares. Após a breve identificação a distinta senhora me perguntou sobre o enfrentamento do novo coronavírus no município de Santa Teresa e o comportamento dos cidadãos neste novo cenário. Adiante me perguntou se tinha conhecimento da nuvem de gafanhotos proveniente da Argentina, que poderia alcançar o sul do país. Respondi afirmativamente. Conversa vai, conversa vem, aceitei a leitura de uma passagem bíblica, sem qualquer ressalva. Escutei atentamente: Miquéias 4, 4.
Após a despedida, apesar de Miquéias fazer referência aos últimos dias e pincelar um ar de esperança naquela passagem, veio-me à lembrança as dez pragas do Egito narradas no livro do Êxodo, com aquele aparente prenúncio do fim dos tempos.
Retomei a década de 1970, quando aluno de ensino religioso no colégio Santa Catarina. Dentre as atividades estavam encenações, e aí entram as dez pragas do Egito. Uma farta lembrança desta arte tão valorizada naquela escola. E como não lembrar agora da famosa peça sobre a mártir Catarina de Alexandria! E não era só, a atividade semanal estava na participação na missa das 8h, aos domingos. Era preciso acompanhar com atenção, principalmente as leituras e o evangelho, pois, aleatoriamente, a irmã Vitória nos cobraria na segunda-feira.
Mas o dia seguinte estava longe. A expectativa pelo término da missa era imensa para seguirmos rapidamente para o jardim. Brincar de pique-pega, bandeirinha, queimada ou polícia-ladrão era o ritual entre o espaço do nosso jardim e o jardim do Santa.
A hora corria sem que percebêssemos, mas alguém sempre aparecia para lembrar-nos de que era preciso se alimentar. Passos rápidos me levavam até o velho casarão da rua de cima (hoje rua do lazer) para saborear a macarronada feita pela vó Maria, acompanhada de galinha frita e refrigerante. Era o tradicional almoço de domingo, em família.
E por falar em polícia-ladrão, deixando o saudosismo de lado, as notícias veiculadas nos principais meios de comunicação dão conta de um esquema fraudulento que afetou sensivelmente as tentativas de minimizar os efeitos danosos da Covid-19. O recebimento indevido de auxílio emergencial e a compra de equipamentos e medicamentos superfaturados por gestores públicos Brasil afora são exemplos típicos de que doenças e pragas humanas continuam a proliferar. Estas condutas reforçam que permanecemos diante de uma crise ética, que agrava ainda mais a crise sanitária e econômica que vivenciamos.
Solicitar ou receber alguma coisa indevida é corrupção e demonstra um comportamento de querer levar vantagem em tudo, a famosa “lei de Gerson”. O vírus chega invisível e os gafanhotos chegam aos nossos olhos. Ambos, doença ou praga, ao seu modo, causam danos irreparáveis, destroem e levam muitas vidas ao final dos tempos. É o que podemos falar, nesse momento, destes vírus e gafanhotos humanos.
A vida é um ciclo. O ódio, a indiferença e a corrupção são vetores do prenúncio do fim dos tempos, principalmente para os miseráveis, os mais vulneráveis, e não se trata de uma seleção natural, mas humana. A esperança fica na possibilidade de, um dia, voltarmos às brincadeiras de infância e ao almoço, em família, semelhantes aos daqueles domingos.