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Em nome da cruz

Por Kleber Medici

Em tempo de bravatas, o fanatismo daqueles que vivem pendurados nos extremos da balança continua distorcendo a realidade. Não desejam cultivar o equilíbrio. A intolerância ignora o diálogo, gera cegueira e, como consequência, o que se ouve e o que se fala é verdade absoluta. 

Os fanáticos de hoje lembram os prisioneiros do mito da caverna escrito por Platão. Nesta alegoria Sócrates, mestre de Platão, pede que Glauco, um jovem aprendiz, imagine pessoas mantidas acorrentadas, desde a infância, no fundo de uma escura caverna. Estes prisioneiros são obrigados a olhar apenas para a parede à sua frente onde eram projetadas sombras de figuras representando seres, animais e outros elementos.

A luz de uma fogueira projetava estas sombras que, de maneira distorcida, eram todo o conhecimento que os prisioneiros tinham do mundo. Os opressores da caverna produziam este espetáculo levando-os a acreditar que eram livres. https://www.em.com.br/app/noticia/especiais/educacao/enem/2015/08/03/noticia-especial enem,674644/platao-e-o-mito-da-caverna.shtml 

Atualmente, a intolerância fortalece os elos que aprisionam cada vez mais pessoas que nutrem as sombras como verdade absoluta. Dentre tantos eventos ocorrentes nos últimos tempos, na quinta-feira (11), voluntários da ONG Rio de Paz abriram 100 covas e fincaram cruzes na areia da praia de Copacabana para simbolizar as mortes pela Covid 19 e cobrar das autoridades públicas mais responsabilidade na condução dos trabalhos de prevenção e controle da doença. 

Inusitadamente um homem invadiu o espaço e começou a derrubar as cruzes, sob a alegação de não ter resistido, porque eram montadas pela esquerda. Esta era a sua verdade. O espetáculo das sombras não o deixou enxergar a razoabilidade de um ato em memória às vítimas do novo coronavírus e, ao mesmo tempo, um alerta aos governantes sobre a responsabilidade e respeito para com a coisa pública. 

Ali estavam as cruzes. Apenas as cruzes que, hoje, já representam 47.869 óbitos no Brasil, 1.223 no Espírito Santo e cinco na nossa “doce terra dos colibris”.

Diante da crença distorcida, que resultou na derrubada das cruzes, o ato daquele pai que perdeu o filho tão jovem pela Covi19, ao recolocar as cruzes em seus devidos lugares, foi transformado em símbolo de respeito pelos que partiram e seus familiares. Com este gesto, a liberdade revelada no mito da caverna foi concretizada! 

Na alegoria, o prisioneiro imaginado por Platão contrariou a realidade da caverna ao perceber que algo estava errado e conseguiu se libertar. Para tanto, percorreu um difícil caminho: se espantou com a fogueira, cuja luminosidade ofuscou seus olhos, enfrentou os obstáculos naturais, os opressores e suas vorazes argumentações de que as sombras e as vozes distorcidas eram a verdade. 

Perseverou, e ao sair da caverna, apesar da momentânea cegueira, aos poucos percebeu o brilho do sol. Abandonou o mundo do achismo e passou para o mundo da verdade, do conhecimento. Ao retornar à caverna para compartilhar com os demais a boa nova, para sua surpresa, foi chamado de louco, porque, para os que ficaram, a única verdade estava no espetáculo das sombras.

Aos olhos da fé, no calvário existiam três cruzes, uma ao centro, outra à esquerda e outra à direita. Em cada uma, naquele momento, um ser humano, uma dor. Se a culpa é do diabo, não se pode esquecer que a ação ou omissão é humana. Bravatas e intolerância verdadeiramente cegam. Em nome da cruz, cabe a cada um buscar o verdadeiro conhecimento, mesmo que seja reconhecido como loucura. Só assim conheceremos a liberdade e a paz. 

Evandro Seixas Thome

Brasileiro, Tronco Aruake, Etnía Baré, nasceu em Manaus - AM em 1963, cursou filosofia no Colégio Salesiano Dom Bosco, foi legionário da Cruz Vermelha de 1987 a 2001, atualmente é técnico em gestão de resíduos sólidos, ambientalista pelo Observatório da Governança das Águas (OGA); Jornalista/editor do periódico mensal Santa Teresa Notícia (STN) em Santa Teresa-ES. Contatos pelo 27 99282-4408