MISSÃO: CUIDAR E PROTEGER
Entrevista com o Biólogo Edson Valpassos Reuter Mota
Em uma feira de ciências em Nanuque-MG, o carioca Edson com 12 anos, recebia uma menção honrosa da escola, ao apresentar seus quadros com insetos capturados na fazenda do pai Clóvis Reuter Mota em Cristal do Norte-RJ, ali começava a se desenhar a futura vida como biólogo, mais tarde, já formado como biólogo marinho pela UFRJ, fez estágio no MBML sob direção do naturalista Augusto Ruschi, com quem adquiriu o interesse na preservação de espécies como orquídeas e beija-flores e em particular o interesse em contribuir com a conservação da natureza, hoje aos 63, vive criando, protegendo e administrando unidades de conservação. Vamos conversar com um dos maiores preservacionistas do estado, Edson Valpassos Reuter Mota, inclusive para falar de Ruschi.
STN – Conte-nos um pouco sobre sua formação.
Edson Valpassos Reuter Mota – Formei-me em 1980 em Biologia Marinha na UFRJ, muito influenciado pelos filmes de Jacques Cousteau, chegando a fazer um curso intensivo de mergulho na Base Naval de Niterói. Em 1990, já no ITCF, atual IDAF, concluí o Mestrado em Ciências Florestais pela Universidade Federal de Viçosa, sob a orientação do prof. americano e grande amigo James Jackson Griffith, com quem tive o prazer de fazer um curso de gestão de áreas protegidas nos EUA, que em muito contribuiu para minha formação e também para definição da minha tese de mestrado. Intitulada “identificação de novas unidades de conservação no estado do Espírito Santo utilizando o Sistema de Análise Geo-ambiental – SAGA” foi desenvolvida sob a coorientação do saudoso prof.Jorge Xavier do depto de geografia da UFRJ, mestre inesquecível. Atualmente, sou professor concursado do estado do ES, desde de 2013, estando atualmente, no Iema e desde de junho deste ano, como gestor da APA do Pico do Goiapaba-açu em Fundão/Santa Tereza e da Área de Relevante Interesse Ecológico do Morro da Vargem em Ibiraçu.
STN – Desde cedo você se identificou como um protetor da natureza, cite algumas das muitas ações de proteção que você empreendeu?
Valpassos – Sim, a atração por insetos e répteis desde criança já era um indicativo, contrariando o desejo do meu pai de que eu fosse agrônomo. Mais tarde, passei a mergulhar para pegar peixes e lagostas, ficando extasiado após cada mergulho. Posteriormente consegui comprar uma máquina fotográfica para fotografia submarina profissional, uma Nikonos IV que tenho até hoje, com a qual fiz alguns registros, inclusive na Flórida. Mas sem dúvida, foi durante a implantação do projeto Tamar em 1982, vi que proteger a natureza, seria meu destino, e me dediquei e ainda dedico até hoje a criar, proteger e administrar unidades de conservação. Participei de várias ações relativas à política ambiental, dentre elas, a elaboração do decreto de regulamentação da lei estadual de agrotóxicos e do Sistema Estadual de Unidades de Conservação, da criação do primeiro batalhão da polícia ambiental, da criação dos parques estaduais da Fonte Grande, Itaúnas, Monumentos Naturais da Serra das Torres e Pontões Capixabas Refúgio da Vida Silvestre Municipal de Fradinhos em Vitória, além de ter participado de vários momentos como ambientalista em campanhas e protestos contra a poluição na região da grande Vitória.
STN – Quando e como conheceu o cientista Augusto Ruschi?
Valpassos – Conheci o saudoso Prof. Augusto Ruschi em duas palestras que fez na faculdade no RJ em 1988 a 1989. Muito me impressionou o jeito calmo e ao mesmo tempo enérgico, com que falava aos alunos, provocando um silêncio absoluto, enquanto bebíamos extasiados seu conhecimento e em particular sua empolgação quando falava das suas lutas. Sem dúvidas, hoje revisitando o passado e vendo o jeito que as vezes falo, durante as denúncias que também faço, sinto que me deixei contagiar pelo seu jeito firme em se posicionar contra absurdos que às vezes temos conhecimento, causando muitas vezes indignação.
STN – Fale um pouco sobre Ruschi.
Valpassos – Era muito recluso, vivia intensamente a ciência e mergulhado em tempo integral em seus estudos, intransigente na defesa da natureza e do seu acervo.
Possuía uma personalidade que variava entre o bom humor até a um típico ancião emburrado. Na época em que trabalhei com ele, acho que já decorrente do processo de separação que ocorreu após minha saída e ainda associado ao tratamento de câncer na garganta, penso que esses dois fatores influenciaram bastante no seu humor.
Apesar do relativo pouco tempo ao lado dele, cerca de 6 meses, pude perceber já depois, que sua pesquisa sobre beija-flores tinha ultrapassado os limites do Brasil, ele foi diversas vezes a outros países atrás de exemplares de espécies endêmicas. Já com orquídeas, sua ação até onde pude acompanhar era mais no ES, assim como sobre morcegos.
Aves de uma maneira geral era um grande conhecedor, lembro que presenciei um diálogo curto e “grosso” com uma das artistas que estavam pintando uma prancha de uma saracura, e ele ao passar por ela que desenhava na biblioteca, virou-se pra ela e disse a queima roupa: “a cor das pernas está errada, é mais clara”, e virando as costas, saiu em seguida para seu quarto, que era ao lado.
Certa vez comigo, foi mais ou menos parecido. Após uma enchente que havia inundado tudo e revirado o orquidário em meio a lama, ele chegou para mim, me deu um rolo de fio de cobre e pediu que consertasse o local e arrumasse as plantas. Eu então passei dois dias limpando e arrumando os vasos, quando ele chegou observou e disse: “vai morrer tudo”, ao que perguntei: porquê? E ele respondeu quase inaudível, “O cobre que você usou para fixar as plantas no xaxim vai matá-las, use forquilhas de bambu”. Assim aprendi e uso até hoje essa técnica de fixação.
Augusto Ruschi é considerado por muitos um profeta, o que você acha?
Valpassos – Não diria profeta, mas um homem experiente cuja visão lhe permitia enxergar dezenas de anos à nossa frente. Seus avisos se cumpriram, fui testemunha do danoso impacto sobre a bacia hidrográfica do rio Itaúnas em Conceição da Barra, provocado pelo plantio intensivo de eucalipto na região norte do ES, pois quando uma seca forte ocorreu, em 97, pude observar na ocasião todos os pequenos córregos e lagoas da região secaram, em face a pressão hídrica do eucalipto sobre o lençol freático. Na época só o Rio Itaúnas e mau mau o São Domingos também, ainda corriam, basta procurar quando aconteceu a primeira crise de abastecimento de água em Conceição da Barra, fornecendo água salobra a população, pois a cunha salina chega até o ponto de captação em Santana, pois o rio tinha pouca vazão, e chegaram até represá-lo com sacos de areia próximo a ponte de acesso a sede do município. À época, as Áreas de Preservação Permanente, conhecidas como APPs, eram quase que totalmente ocupadas por plantios de eucalipto e assim o impacto foi ainda maior sobre o meio ambiente. Era comum na época a expressão: “Se você tem uma área alagada, plante eucalipto, ele puxa a água”.
STN – Augusto Ruschi foi um dos precursores da agroecologia, ele falava a respeito?
Valpassos – A agroecologia, já antecipada por ele, que é o título de um de seus livros e subsidia até hoje linhas de pensamento para quem faz projetos de agrossilvicultura, mostrando o caminho a ser trilhado. Na época eu desconhecia o termo, e só posteriormente, já quando fui contratado em 1982 pelo ITC, (que se tornou Idaf) vim a ter contato com essa linha de pensamento, quando tive oportunidade de participar de um congresso em Curitiba -PR, o primeiro do gênero que eu tive contato e ali ouvi muitos princípios de Agricultura Orgânica e a biodinâmica, está última com forte influência da Alemanha. Em Boa Esperança há ainda uma excelente escola nesta linha, onde conheci um grande amigo o alemão Klaus Novotoni. Acredito que ele, Ruschi como um cientista de fama mundial foi influenciado pelos colegas da época e deve ter compartilhado muitos conhecimentos que o levaram a desenvolver suas teses e experiências nesse campo, nota-se a grande sensibilidade de Ruschi, da preocupação que ele tinha pelo equilíbrio da natureza e nessa linha está a rejeição ao uso do agrotóxico e a necessidade de observar a biodiversidade, bem como sua contestação à monocultura, em particular do eucalipto, Ele sabia, obviamente que era uma planta muito exigente em termos de água, se plantada de maneira extensiva poderia causar problemas de abastecimento e déficit hídrico nos lençóis freáticos, o que de fato ocorreu e eu testemunhei com relação ao plantio na região norte do nosso estado.
Nesta ocasião, em 1997, tivemos também, coincidentemente, um dos piores incêndios na Reserva Biológica de Sooretama, embora um fato não tenha ligação com o outro.
Histórias de Ruschi
Quando eu cheguei em Santa Teresa, uma das coisas que eu procurei, porque já havia experimentado, era o vinho de jabuticaba e, em contato com os guardas florestais, antigamente IBDF, que frequentavam a casa do Ruschi, trazendo pra ele plantas que recolhiam dos locais já desmatados. Ele pegava essas plantas e levava, pendurava lá no museu, e também lá na trilha que leva à sepultura dele. Os guardas me levaram aos locais onde se produzia vinho de jabuticaba, e vinho de laranja, conheci alguns excelentes produtores, eu tomava meu vinho todos os dias. Um dia enquanto almoçava com ele, virou pra mim e falou: ” Eu não sei como você consegue tomar esse vinagre”, aquela voz empostada e eu ria, “você não gosta, professor?”, ” Não, não gosto disso, é muito azedo” ele tinha esse lado meio crítico e ao mesmo tempo brincalhão.
Salvo pela cobra
Um fato interessante, uma história que segundo ele de fato aconteceu, em uma dessas medições, lá para o norte do ES, um lugar onde havia um “matador” que não queria que ele fosse lá para medir as terras. Ele, sem imaginar o que lhe esperava, seguia no meio da mata, quando encontrou uma surucucu, no meio da trilha, ele como conhecedor, sabia manipular esses répteis e pegou e começou a examinar a cobra e acabou soltando o animal e seguiu viagem. Tempos depois, ele ficou sabendo que naquele exato lugar onde ele tinha pego a cobra, o tal matador, estava com uma espingarda esperando ele para matá-lo, e diante daquela cena, desistiu de atirar em Ruschi. A conversa se espalhou depois, quando o matador foi indagado pelas pessoas, porque que ele não matou Ruschi? ele respondeu, ” E eu vou fazer isso rapaz? O cara tem pacto com o diabo, ele pegou uma surucucu com a mão, e eu vou matar um sujeito desse rapaz? De jeito nenhum!”. E essa é uma das histórias que eu ouvi Ruschi contar.
A arte de empalhar
Logo quando eu cheguei lá no museu, o Ruschi na expectativa que eu pudesse trabalhar com ele futuramente, queria que eu aprendesse duas coisas, a taxidermia, que consiste no chamado empalhamento de animais, ele tinha uma grande coleção de animais empalhados e precisava de alguém para poder manipular e empalhar animais, em especial os beija-flores que era uma dos seus objetos de estudo. E assim ele me encaminhou, logo na primeira semana, para o empalhador oficial dele Elias Lorenzutti, em Linhares e assim, seguindo as orientações, fiquei lá uns 2 ou 3 dias conhecendo como se desenvolvia essa técnica fantástica que é o empalhamento de animais. E lá chegando eu conheci pessoalmente o Sr. Lorenzutti que após me mostrar sua imensa coleção de animais empalhados, sentou-se um um mesinha nós fundos da casa e me mostrou como é que se fazia. Ele tinha lá um beija-flor morto na geladeira e falou: – “Eu vou aproveitar esse beija-flor que chegou aqui pra mim, e vou empalhar pra você ver.” E ali na minha frente, ele pegou aquele diminuto animal, abriu, separou a pele do corpo do animal, em aproximadamente 2 minutos o animal estava na mão dele já empalhado, como se vivo estivesse. Ele tinha uma habilidade absurdamente fantástica com essa técnica de empalhamento. Mais tarde cheguei a trabalhar com o filho dele, Ademar Lorenzutti, ajudando no empalhamento de alguns animais, que hoje estão expostos nos Parques Estaduais da Pedra Azul do Forno Grande.
Herborização
De volta ao Museu Mello Leitão, ele me encaminhou ao Museu Nacional no Rio de Janeiro, onde lá eu aprendi a técnica de herborização, que consiste em prensar, secar e catalogar com fichas amostras de plantas e foi assim então que eu comecei a pegar gosto pela botânica, razão pela qual eu hoje tenho um pouco de experiência nessa área, tendo algumas exsicatas armazenadas no MBML e outras depositadas no herbário da UFES. Então, essas coisas a gente não esquece e tenho muito que agradecer a oportunidade que tive desse imenso aprendizado, que foi muito além do que aprendi na faculdade.
Como um filho
Um fato muito importante na minha vida e que foi marcante, por assim dizer, porque só de eu lembrar a emoção vem junto. Foi quando eu cheguei para o meu pai e minha mãe, falei que gostaria de fazer um estágio lá no Museu de Biologia Mello Leitão, eles relutaram um pouco, e falando “Você gostaria que a gente fosse junto?” Eu falei “Claro pai!”, até porque na ocasião, eu não poderia fazer de forma diferente, e assim nós fomos, então, nós três até a casa de Ruschi, chegando lá, ficamos naquela varanda antes da entrada da sala, que era a sede do museu. Ele muito cordial nos recebeu, e conversa vai, conversa vem, perguntou da onde eram meus pais, e meu pai se identificou como sendo da família Reuter de Nanuque, Minas Gerais, e que possuía uma fazenda na região do 3 de Agosto, quando ele virou-se meio que surpreso e ao mesmo tempo surpreendendo a todos e perguntou ” A Fazenda 3 de Agosto, ali perto do 2 de Julho?” Aí ele falou “sim, exatamente.” “Ah, você sabe aquelas perobas que existem lá?” Aí meu pai falou: “Sim, sei, aquelas perobas.” “Pois fui eu que plantei,” disse orgulhoso. Eu não sei se de fato, foram plantadas pelo Ruschi, mas não duvido que tenham sido, porque a fazenda pertencia à antiga Companhia Industrial Madeiras, a CIM, primeira proprietária das terras. Mas no final dessa conversa, ele vira-se para os meus pais, olhando pra mim e falou a seguinte frase: “Esse vai ser o filho que eu não tenho.” Eu não tinha até então conhecido a família do próprio Ruschi, e aquela afirmativa foi difícil, pra se dizer, muito impactante, e é algo que eu trago dentro do meu peito até hoje, é um legado, uma responsabilidade, que eu acho que reflete diretamente em quase tudo o que eu fiz na minha vida como biólogo e ambientalista, ao longo desses quase 40 anos como servidor público, e mau sabia eu, que na ocasião, que ele já tinha 2 filhos, o Augusto e o André, que por razões que eu desconhecia até então, havia divergências entre os pais e os filhos, razão talvez, por ele ter feito a afirmativa que fez. Vem, eu acho que é o suficiente pra ilustrar um pouco da vida desse biólogo e essa relação que eu tive com o Ruschi, a qual foi pra mim muito gratificante. Seus livros autografados, são pra mim verdadeiras relíquias desses momentos de convivência.
Em seu sepultamento, junto com os amigos Paulo Fraga e Rogério Medeiros, fomos um dos últimos a nos despedir do grande naturalista Augusto Ruschi.