‘Não somos indígenas só em abril. Somos indígenas nos 365 dias do ano’
Às vésperas do Dia do Índio, guaranis e tupinikim foram convidados na Ufes e no gabinete do governador.
Vitor Taveira Foto: Prefeitura Municipal de Aracruz
A frase que dá título a esta matéria foi um desabafo de Jocelino Tupinkim, jovem liderança da aldeia de Caieiras Velha, em Aracruz. Temos um ano inteiro para discutir o tema indígena, convidar as diferentes etnias para falar e nos mostrar sua cultura, mas a maioria dos convite vem justo nessa época, quando possuem as agendas já apertadas com as próprias celebrações nas aldeias por conta do Dia do Índio, 19 de abril.
Mas tudo bem, eles dão um jeito de atender as agendas de cá. “Se em outros tempos nós tivemos que nos esconder da violência do Estado, eu diria que hoje, como nunca antes, temos denunciar e dizer que o tempo do silêncio definitivamente acabou e agora nós vamos protagonizar nossas lutas pra valer”, disse Edson Kayapó, doutor em História, que foi um dos palestrantes convidados no dia 17 de abril para o evento Aliança Indígena, realizado na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) em Vitória.
Importantes lideranças e grupos culturais indígenas tupinikim e guarani do estado, junto a convidados do povo kayapó, participaram do evento repleto de emoções, memórias, falas contundentes, críticas ao racismo institucional e também celebrações e mostras da cultura.
No dia seguinte, mais um encontro na capital. Dessa vez com o governador Renato Casagrande (PSB), que recebeu um documento com as principais reivindicações. “O Governo do Estado, como um todo, está à disposição de vocês. Sabemos o que vem acontecendo com os indígenas a nível nacional e podem contar integralmente com meu apoio político nas suas lutas”, afirmou o governador.
Porém, o desenrolar dos debates na Ufes, mostram que o avanço das lutas e conquistas dos povos originários, tão diversos entre eles mas marcados pela violência do rolo compressor colonial, dependem mais do que da simpatia das lideranças políticas. Necessitam de um compromisso real e permanente e políticas públicas que permitam não só incluir, mas também transformar as estruturas de poder. Junto com o povo negro e outras comunidades tradicionais, os indígenas sofrem com o racismo institucional, arraigado nos dirigentes e funcionários, imperceptível a muitos olhos que acostumaram a ver as coisas a partir de um Estado com instituições construídas tendo como base o pensamento branco e colonial.
Pode parecer exagero discursivo e talvez até uma retórica abstrata, mas pergunte aos indígenas e aos negros como se manifesta concretamente esse racismo nas coisas grandes e pequenas, no cotidiano do que é viver numa comunidade periférica urbana ou rural, ou no que significa frequentar o espaço essencial de produção de saber da modernidade, a Universidade.
Estudante de direito, Alyne Kayapó, outra brilhante jovem indígena que busca na espiritualidade uma fortaleza para enfrentar todas essas realidades, falou sobre o tempo indígena, diferente do “kronos” ocidental. E falou de memória, oralidade e educação. “Por que a sociedade nacional quer cobrar de nós povos indígenas que a gente tenha o mesmo comportamento da época da invasão? Porque eles estão acostumados com livro que é uma coisa que engessa, não olham para a dinâmica das coisas. Nós todos somos super dinâmicos, a história está em constante movimento”.
Os direitos indígenas antecedem ao Estado, são direitos originários, lembra Paulo Tupinikim. Mas para sobreviver física e culturalmente os indígenas precisam que o Estado faça a demarcação e proteção de territórios que permitam a reprodução de seu modo de vida. Territórios que na verdade lhes foram usurpadas com apoio direto ou velado desse mesmo Estado. Imagina então o tamanho dessa luta. “Somos índios, resistimos há 500 anos. Fico preocupado é se os brancos vão resistir”, declarou no ano passado Ailton Krenak, diante de um momento de acirramento na sociedade brasileira.
“Nossos grandes líderes lutaram para nós, esses direitos não foram ganhos de mão beijada”, afirmou na Ufes o cacique guarani Werá Kwarai “Nossos grandes líderes foram vistos como se fossem selvagens. Selvagem são aqueles que jogam bombas para destruir a vida. Selvagem é aquele que destrói todo saber, viola o saber de outros, explora a força física de outro. Esses são os selvagens”.
Nas redes sociais, Célia Xakriabá, importante liderança jovem de Minas Gerais, ironizou: “Eu tô aqui pensando, onde está o tanto de gente que usou cocar no carnaval para homenagear nosso povo indígena, será que vai estar com nós na próxima semana na Mobilização Nacional Indígena em Brasília?”
Os que “homenagearam” os indígenas no carnaval, os que lembraram desse 19 de abril com imagens daqueles indígenas idealizados, os que trocaram seu sobrenome para Guarani Kayowaá no Facebook, estarão acompanhando as lutas e reivindicações dos povos originários o ano inteiro?
É verdade que o “kronos” da cidade é brutal. Que a instantaneidade e excesso de informação das redes atropela e confunde diante de uma luta ancestral. Mas como provocou Célia, um primeiro desafio pode ser tentar acompanhar e apoiar as mobilizações do Acampamento Terra Livre, que reúne inúmeras etnias na próxima semana, de 24 a 26 de abril em Brasília, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). O governo federal desses tempos de trevas já autorizou o uso da Força Nacional contra os povos indígenas que ali estarão acampados.
Tradicionalmente o Acampamento Terra Livre sempre foi um espaço de paz, diálogo e reivindicação. Os indígenas capixabas estarão presentes, assegurou Paulo Tupinikim. E você? No que resta deste abril, deste ano, deste governo e dos tempos que virão, como você pretende apoiar a luta mais justa e mais antiga desse país?
Saiba mais em: